Opinião
Passei as duas semanas nos Estados Unidos debatendo inteligência artificial aplicada ao Direito em uma agenda intensa com profissionais de grandes empresas, acadêmicos e membros do Judiciário em um país que o centro do mercado jurídico e da tecnologia. Este artigo apresenta as conclusões desse ciclo de trocas e observações sobre o que há de mais avançado na prática jurídica com IA, especialmente no ambiente corporativo.
Spacca
A primeira constatação é a de que, apesar das diferenças entre as legislações, os modelos regulatórios estão convergindo para a ideia de accountability baseada em risco. No entanto, Brasil e União Europeia avançam para regulações detalhadas, com forte exigência de governança e documentação prévia, enquanto os Estados Unidos mantêm um modelo descentralizado, com liberdade para inovar e responsabilização posterior. Diante do estágio atual do debate brasileiro, entendo que um modelo próximo ao americano seria o mais desejável, por permitir inovação ágil e competitividade internacional sem abrir mão da responsabilidade quando necessário.
No campo da aplicação corporativa, essa transformação é concreta no dia a dia. Departamentos jurídicos não discutem mais se vão adotar IA, mas como. Os primeiros usos são claros: revisão de documentos, triagem, sumarização, relatórios e minutas padrão. A IA executa tarefas repetitivas; o advogado revisa, valida e decide a estratégia e a forma final da execução. Surge um novo papel: o profissional jurídico deixa de ser apenas executor e passa a ser o maestro de uma orquestra de IA, coordenando ferramentas, dados e automações sob responsabilidade humana e institucional.
Isso repercute nas relações entre empresas e escritórios. A medição de desempenho, aliada à análise de padrões de cobrança, reduz assimetrias informacionais e torna os escritórios e a relação “data-driven” ou “data oriented”, com critérios objetivos de eficiência, qualidade e entrega. A grande pergunta (nos EUA e no Brasil) é inevitável: escritórios tradicionais sobreviverão à competição com auditorias e consultorias altamente digitalizadas? A resposta dependerá menos de reputação histórica das marcas de escritórios e mais de adaptação tecnológica, cultural e estratégica.
No contencioso, observa-se a ascensão da estratégia jurídica analítica. Jurimetria e modelos explicáveis permitem calcular probabilidade de sucesso, prazos e custos, reduzindo decisões puramente intuitivas. A tecnologia não elimina argumentação ou persuasão (ambas seguem centrais em casos “difíceis”), mas aumenta a racionalidade econômica da litigância e reduz ineficiências sistêmicas.
Esse movimento exige distinguir o que é fronteira e o que é negociável.
A fronteira não negociável envolve atividades altamente sensíveis — M&A, propriedade intelectual, investigações internas, contencioso estratégico e segredos industriais. Nesses contextos, a IA só opera com confidencialidade garantida; e o sigilo profissional e a reputação permanecem o núcleo duro da prática jurídica, inegociável e intransferível à tecnologia.
Em outro camada de discussão, surgem cláusulas contratuais específicas para disciplinar o uso de IA entre empresas e escritórios: no-training, direito de auditoria, logs de atividade e “emergency shutdown”. O objetivo não é impedir tecnologia, mas estruturar proteção institucional do cliente e responsabilidade profissional do advogado.
Daí decorre a necessidade de governança de IA: políticas claras dentro de empresas e escritórios de advocacia sobre quando e como utilizar IA, comitês multidisciplinares, rastreabilidade e protocolos de resposta. Não se trata apenas de tecnologia, mas de cultura organizacional. O risco real não está no uso da IA, mas no uso sem estrutura, sem supervisão humana, sem uma política e sem salvaguardas.
O impacto econômico é imediato. A IA reduz custos transacionais, acelera processos decisórios e transforma departamentos jurídicos em centros de inteligência de negócios. A lógica é schumpeteriana: eficiência, competição e reconfiguração do mercado jurídico. A ameaça real não é a IA substituir profissionais, mas profissionais que não se adaptarem.
Uma conclusão se impõe: a inteligência artificial não substitui o julgamento jurídico. A própria etimologia da palavra “julgamento” (do latim “iudicium”) remete ao campo da razão prática, no qual o processo decisório depende do equilíbrio entre razão e emoção humanas para alcançar um resultado institucionalmente legítimo. Um algoritmo pode calcular probabilidades de palavras, mas não emula prudência, experiência humana, senso de justiça e responsabilidade institucional.
E não devemos nos assustar com essa transformação
Outras áreas já viveram transições semelhantes com tecnologia: a medicina incorporou diagnósticos assistidos por software, a odontologia integra scanners e planejamento digital, e a aviação opera com automação avançada. Nenhuma dessas profissões desapareceu, elas se transformaram.
O Direito seguirá o mesmo caminho: continuará essencial, mas praticado de forma diferente. E prosperarão os profissionais capazes de liderar pessoas, dados e tecnologia, atuando, de fato, como maestros de uma orquestra de IA. Mas o perfil do advogado se transformará. Faculdades de Direito devem estar atentas a isso, assim como empresas e escritórios.
Fonte:Conjur