Por que o habeas corpus incomoda tanto o Judiciário?


Opinião

O brocardo latino dormientibus non succurrit jus — “o direito não socorre aos que dormem” — tem função central em nosso processo civil, ao sancionar a inércia da parte na defesa de seus interesses. Contudo, a questão que se impõe é: o que ocorre quando não é a parte que dorme, mas o próprio Poder Judiciário?

Imagine-se o seguinte cenário, infelizmente comum: o impetrante, inconformado com a decisão que indefere liminar em mandado de segurança, interpõe agravo de instrumento dentro do prazo legal.

O recurso é distribuído a um relator no Tribunal de Justiça que, sob a justificativa genérica de ter que ouvir a outra parte antes de analisar o pedido de urgência no AI, deixa de apreciá-lo em tempo razoável (mesmo a parte recorrida já tendo apresentado as suas razões).

O processo de origem prossegue, e a sentença é proferida denegando a segurança. No dia seguinte à prolação da sentença, o agravo é imediatamente julgado prejudicado por perda de objeto do recurso, por considerar exaurido o provimento jurisdicional de primeiro grau.

Embora já se saiba qual é a resposta, a pergunta que se impõe é: houve realmente perda de objeto ou houve, na verdade, omissão judicial proposital causadora de perecimento artificial do direito de defesa?

Razoável duração do processo

Com efeito.

A Constituição assegura, em seu artigo 5º, inciso LXXVIII, que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam sua celeridade”.

Spacca

Além disso, o Código de Processo Civil prevê em seu artigo 4º que as partes têm o direito de obter, em prazo razoável, a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa, e no artigo 6º que todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

Esses dispositivos mostram que o sistema processual impõe dever não apenas à parte, mas ao próprio Estado-Juiz de prestar tutela jurisdicional em tempo razoável. É uma balela, lex mortua, infelizmente!!!

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reconhece, embora com limites, que a demora injustificada na prestação jurisdicional gera responsabilidade do Estado e afronta ao princípio da razoável duração do processo.[1]

Esse conjunto normativo e jurisprudencial impõe que não basta a existência formal do processo — é preciso que o acesso à tutela seja efetivo, e não ilusório.

Para que se declare a perda de objeto de recurso, é necessário que o provimento deixado de analisar perdeu completamente sua utilidade prática — e que essa perda não decorra unicamente da omissão do tribunal.

Erro jurídico

Quando a demora do julgador é fator decisivo para o esvaziamento do agravo, a parte permanece pronta, habilitada, recorrente — e não há culpa dela pelo delay —, considerar a perda de objeto automático revela erro jurídico.

Nessa hipótese, cabe reconhecer que a inércia buscou-se imputar a quem age, o que fere o princípio da isonomia e da cooperação processual. Em vez de a parte “dormir”, quem dormiu foi o serviço jurisdicional.

O princípio da causalidade deve ser aplicado: se o perecimento do interesse recursal decorreu da omissão judicial, não há perda de objeto, mas sim frustração da tutela jurisdicional. O processo, nesses casos, não é apenas meio, mas fim negado.

Logo, defendemos que a responsabilidade também recaia sobre o Estado-Juiz, e não somente sobre a parte. É dizer: se o recurso perdeu o objeto a parte pagará em não vê-lo apreciado (perda de uma chance), mas se tal perda se deu por culpa exclusiva do Estado, esse também pagará, indenizando-a por danos morais.

A parte que agiu tempestivamente não pode ser apenada porque o órgão julgador “dormiu”.

Promover essa distinção contribui para a efetividade da tutela jurisdicional e para que o Estado-Juiz cumpra a função constitucional que lhe cabe: garantir a solução de conflitos em tempo razoável, sem que o direito vire letra morta por falha institucional.

O velho brocardo dormientibus non succurrit jus serve à ordem, não à injustiça. Ele não pode ser manipulado para legitimar a morosidade judicial ou eximir o Estado de sua obrigação constitucional de prestar tutela jurisdicional tempestiva e efetiva.

Quando o cidadão faz tudo o que está ao seu alcance e, ainda assim, vê seu direito perecer porque o Judiciário dormiu, é o próprio Estado que viola o princípio que invoca.

 


[1] Confira-se: RESPONSABILIDADE CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO. LESÃO. DESPACHO DE CITAÇÃO. DEMORA DE DOIS ANOS E SEIS MESES. INSUFICIÊNCIA DOS RECURSOS HUMANOS E MATERIAIS DO PODER JUDICIÁRIO. NÃO ISENÇÃO DA RESPONSABILIDADE ESTATAL. CONDENAÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO CARACTERIZADA.

1. Trata-se de ação de execução de alimentos, que por sua natureza já exige maior celeridade, esta inclusive assegurada no art. 1º, c/c o art. 13 da Lei n. 5.478/1965. Logo, mostra-se excessiva e desarrazoada a demora de dois anos e seis meses para se proferir um mero despacho citatório. O ato, que é dever do magistrado pela obediência ao princípio do impulso oficial, não se reveste de grande complexidade, muito pelo contrário, é ato quase que mecânico, o que enfraquece os argumentos utilizados para amenizar a sua postergação.

2. O Código de Processo Civil de 1973, no art. 133, I (aplicável ao caso concreto, com norma que foi reproduzida no art. 143, I, do CPC/2015), e a Lei Complementar n. 35/1979 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional), no art. 49, I, prescrevem que o magistrado responderá por perdas e danos quando, no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude. A demora na entrega da prestação jurisdicional, assim, caracteriza uma falha que pode gerar responsabilização do Estado, mas não diretamente do magistrado atuante na causa.

3. A administração pública está obrigada a garantir a tutela jurisdicional em tempo razoável, ainda quando a dilação se deva a carências estruturais do Poder Judiciário, pois não é possível restringir o alcance e o conteúdo deste direito, dado o lugar que a reta e eficaz prestação da tutela jurisdicional ocupa em uma sociedade democrática. A insuficiência dos meios disponíveis ou o imenso volume de trabalho que pesa sobre determinados órgãos judiciais isenta os juízes de responsabilização pessoal pelos atrasos, mas não priva os cidadãos de reagir diante de tal demora, nem permite considerá-la inexistente.

4. A responsabilidade do Estado pela lesão à razoável duração do processo não é matéria unicamente constitucional, decorrendo, no caso concreto, não apenas dos arts. 5º, LXXVIII, e 37, § 6º, da Constituição Federal, mas também do art. 186 do Código Civil, bem como dos arts. 125, II, 133, II e parágrafo único, 189, II, 262 do Código de Processo Civil de 1973 (vigente e aplicável à época dos fatos), dos arts. 35, II e III, 49, II, e parágrafo único, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, e, por fim, dos arts. 1º e 13 da Lei n. 5.478/1965.

5. Não é mais aceitável hodiernamente pela comunidade internacional, portanto, que se negue ao jurisdicionado a tramitação do processo em tempo razoável, e também se omita o Poder Judiciário em conceder indenizações pela lesão a esse direito previsto na Constituição e nas leis brasileiras. As seguidas condenações do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos por esse motivo impõem que se tome uma atitude também no âmbito interno, daí a importância de este Superior Tribunal de Justiça posicionar-se sobre o tema.

6. Recurso especial ao qual se dá provimento para restabelecer a sentença.

(REsp n. 1.383.776/AM, relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 6/9/2018, DJe de 17/9/2018.)



Fonte:Conjur

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