Por que o habeas corpus incomoda tanto o Judiciário?

Ainda ressoa a notícia de que o Superior Tribunal de Justiça atingiu a impactante marca de 1 milhão de Habeas Corpus impetrados. Evidentemente que esse momento não foi desperdiçado pelos ministros da Corte para censurar o que seria um uso indiscriminado do remédio constitucional, clamando pela restrição no seu uso. Nas ponderadas palavras do ministro Rogério Schietti, “o Habeas Corpus foi ampliando seu leque de incidência de tal modo que, hoje, tudo que ocorre no processo penal, ou mesmo antes dele, pode ser objeto de um Habeas Corpus. É uma tradição nossa difícil de mudar, porque se você, de alguma forma, criar limitações, isso causará reações, além da desproteção a alguns direitos que são alcançados por uma interpretação bem ampla do instituto” [1].

Diz-se, então, que há um desvirtuamento do Habeas Corpus, que teria se convolado numa espécie de “panaceia” do processo penal. Não acredito existir esse “desvirtuamento” do writ, como se quer fazer crer. Desvirtuar significa desviar de sua rota natural, utilizar para um fim diverso do qual foi estabelecido. Não é o que ocorre com o Habeas Corpus: ele é utilizado no Brasil precisamente para combater aquilo que lhe foi atribuído combater: a ilegalidade e o abuso de poder que afeta ou ameaça a liberdade ambulatória. E são bem diversificadas as maneiras, como veremos adiante, com que essa liberdade pode ser afetada ou ameaçada pelo Estado, sobretudo no Brasil, onde impera a estatolatria e a presunção de bondade e veracidade dos agentes públicos.

Excesso de abusos em instâncias inferiores?

Infelizmente, as críticas ao Habeas Corpus ficam sempre na superfície, sempre focando no efeito e não na causa. Por que não simplesmente reconhecer que esse excesso de impetrações não é mais do que um sintoma, uma sinalização, do excesso de abusos, desvios e ilegalidades que ocorrem com frequência nas instâncias inferiores? O que é uma busca e apreensão coonestada por um juiz a partir de uma denúncia anônima, que provoca uma devassa e um “arrastão” na vida do cidadão, senão uma ilegalidade que precisa de enérgica censura e correção? O que é um Habeas Corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça senão uma maneira de “exibir” à corte não o corpo do cidadão, mas o direito do cidadão de não ser violentado por um ato invasivo fundado no anonimato, expressamente proibido pela Constituição? O que são os inúmeros erros judiciários causados por reconhecimentos feitos ilegalmente pela polícia, em total desrespeito às mínimas exigências do artigo 226, com o aval do Ministério Público (que deveria fiscalizar o cumprimento da lei), e, por fim, com a chancela dos juízes e dos tribunais? O que foi o Habeas Corpus 598.886-SC, relatado pelo ministro Rogério Schietti, senão uma enérgica e pedagógica maneira de se corrigir esses atos ilegais que provocam erros judiciários? Prisões preventivas sem fundamentação, prisões preventivas prolongadas, violações ao artigo 212, violações à ampla defesa, violações à publicidade dos atos processuais, enfim, quantos não são os Habeas Corpus que veiculam semelhantes pretensões, com semelhantes clamores da defesa que vê no Habeas Corpus um refúgio contra esse opressivo sistema de justiça criminal?

O processo penal brasileiro sempre foi um terreno de ampla incidência de arbitrariedades: as autoridades praticam ilegalidades aos montes, o que não pode resultar senão em impetrações também aos montes nas cortes superiores para se corrigir essas ilegalidades. No momento que essas ilegalidades decrescerem, decrescerão por corolário os habeas corpus impetrados para vê-las reconhecidas.

Direitos contra poder punitivo do Estado

A Constituição, no seu artigo 5º, consagra inúmeros direitos do cidadão frente ao poder punitivo do Estado: legalidade, proibição de prova ilícita, direito contra a autoincriminação, proibição contra a tortura, juiz natural, ampla defesa, contraditório, inviolabilidade do domicílio, intimidade e privacidade, entre outros. Todas estas proclamações solenes de nada valeriam se elas não viessem acompanhadas de um instrumento enérgico e eficaz para denunciar as suas violações. O Habeas Corpus é esse instrumento de exibir a ilegalidade, escancará-la, para então censurá-la e corrigi-la imediatamente. A liberdade individual nunca foi protegida contra os abusos do Estado senão quando o Habeas Corpus foi efetivamente colocado à disposição do cidadão para, de forma célere e precisa, interditar a violência — ou a ameaça de violência — contra a sua liberdade. A história da Inglaterra, berço do instituto e um país muito cioso de suas liberdades, bem o revela: antes do surgimento do Habeas Corpus a liberdade individual era tão somente proclamada, mas não efetivamente protegida. “A prisão em terras além-mar”, segundo LISTER, “não foi coibida por lei até a aprovação do Habeas Corpus, em 1679.”[2] Com bem afirma o judicioso historiador inglês Henry Thomas Buckle, foi no reinado de Carlos II que surgiram as medidas mais benéficas ao cidadão, dentre elas o famoso “Habeas Corpus Act” de 1679: “Por meio do ‘habeas corpus’ assegurou-se a liberdade de todo inglês tanto quanto o podia fazer uma lei, por isso que lhe garantia, quando acusado de crime, o ser conduzido à presença de um juiz imparcial, em lugar de ir definhar em uma prisão, como muitas vezes acontecia” [3].

Spacca

As arbitrariedades do Estado se alastram de modo muito imperceptível e incontrolável, pois o poder do Estado se personifica em seus agentes, espalhados ao redor do país, em contato direto com o cidadão, que é sempre vulnerável frente a esses agentes. Regimes ditatoriais são exemplos de como a liberdade individual é facilmente solapada: os agentes mais subalternos têm a facilidade de apreender o corpo do cidadão e privar-lhe a liberdade em instantes, quando não sumir definitivamente com seu corpo. A liberdade de locomoção, diferente da liberdade de pensamento, que é incoercível pelo Estado, exige, para a sua defesa eficaz contra essas investidas diárias dos agentes públicos, um instrumento tal qual o Habeas Corpus, sem o qual, os agentes públicos livre e impunemente a violariam.

Proclamar solenemente na Constituição não basta. Conforme ensina Henry Hallam, o ato de Carlos II não declarou nenhum novo princípio relativo à liberdade individual — pois esta já era garantida pela Magna Carta —, mas apenas instituiu um mecanismo de proteção do cidadão contra as violações a essa liberdade que eram oriundas dos desmandos dos agentes do Estado. Nas suas palavras: “It was not to bestow an immunity from arbitrary imprisonment, which is abundantly provided in Magna Charta, if indeed it were not much more ancient, that the statute of Charles II was enacted; but to cut off the abuses, by which the government’s lust of power, and the servile subtlety of crown lawyers, had impaired so fundamental a privilege” [4].

No mesmo sentido, Macaulay registra que no plano do direito material, substantivo, o Direito inglês sempre protegeu a liberdade contra prisões arbitrárias, mas essa proclamação era ineficaz para garantir essa liberdade contra os abusos no plano processual, eficácia que só veio a existir com o Habeas Corpus Act:

“…the tewnty-sixth of May 1679 is a great era in our history. For on that day the Habeas Corpus Act received the royal assent. From the time of the Great Charter, the substantive law respecting the personal liberty of Englishmen had been nearly the same as at present: but it had been inefficacious for want a stringent system of procedure. What was needed was not a new right, but a prompt and searching remedy; and such a remedy the Habeas Corpus Act supplied.”[5]

Violência contra a liberdade individual

Na França, da mesma forma, como relata Benjamin Constant, a violência contra a liberdade individual não foi coibida pelo fato de se escrever na Constituição que a liberdade individual é inviolável:

“Todas as Constituições que foram dadas à França garantiam igualmente a liberdade individual e, sob o império dessas Constituições, a liberdade individual foi violada sem cessar. É que uma simples declaração não basta: são necessárias salvaguardas positivas; são necessários corpos suficientemente poderosos para empregar em benefício dos oprimidos os meios de defesa que a lei escrita consagra” [6].

Daí o Habeas Corpus como o complemento necessário e insubstituível da liberdade individual. A nossa Constituição diz que “LXVIII — conceder-se-á ‘Habeas Corpus’ sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Sabe-se muito bem que a lei não contém palavras inúteis. Logo, são duas situações fundamentalmente diversas que a Constituição busca tutelar: sofrer a violência ou coação, ou se achar ameaçado de sofrer, por ilegalidade ou abuso de poder. Assim, no Brasil, o Habeas Corpus é muito mais do que “exibir o corpo”: é exibir a ilegalidade ou o abuso de poder, antes mesmo que ela venha a apreender o corpo, e com o preciso objetivo de evitar esta ilegal ou abusiva apreensão. A alegação de “desvirtuamento” decorre da falsa ideia de que o Habeas Corpus é destinado tão somente à primeira hipótese: quando a violência ou coação à liberdade se apresenta. É bem verdade que esta é a situação em que o Habeas Corpus revela a sua maior virtude, que é a celeridade, como pondera Galdino Siqueira: “Não o caracteriza tão somente o seu objeto e o seu fim, que é a proteção e defesa da liberdade: há outras instituições que têm idêntica missão. O que particularmente o distingue é a celeridade com que ele restitui a liberdade àquele que é vítima da prisão ou constrangimento ilegal” [7].

No entanto, a Constituição autoriza o seu manejo pela só existência da ameaça da violência ou da coação: ora, esta ameaça se apresenta em todos os casos em que, em razão de uma ilegalidade, é possível objetivamente se verificar uma pretensão do Estado na restrição da liberdade do cidadão. É o que ocorre em casos como: delação premiada a qual não se dá acesso ao delatado; inquérito ou medida de investigação instaurado com base em mera denúncia anônima; inquéritos tramitando há anos sem acusação formal; denúncias ineptas, que são tanto mais perigosas para a liberdade individual quanto mais vaga e indeterminada é a imputação que nelas se contêm; interceptações telefônicas deferidas sem fundamentação, ou que se prolongam indefinidamente; entre outras situações nas quais, nada obstante a liberdade ambulatória estar intacta, a ameaça a ela é latente, mas nem por isso menos ameaçadora, precisamente em razão da ilegalidade que permeia o procedimento que se vem construindo contra o cidadão, e que, se não for interditado prontamente, fatalmente culminará na violação ilegal à sua liberdade.

Recurso que incomoda

É evidente, como se vê, que o Habeas Corpus incomoda: ele tem essa vocação natural de exibir e corrigir, de maneira célere e enérgica, a ilegalidade, o abuso de poder, os excessos, os desvios e desmandos das autoridades, que veem então no Habeas Corpus esse mecanismo de exibir, escancarar aquilo que elas gostariam que permanecessem oculto, desconhecido, impune. As arbitrariedades se prolongariam e se alastrariam de maneira indefinida e incontrolável sem o Habeas Corpus como mecanismo célere e enérgico de exibição e correção dos abusos e excessos do Estado no processo penal. Sempre que o advogado recorre ao Habeas Corpus, é porque vê nele um refúgio, é porque outros mecanismos de combate aos excessos do Estado vêm se revelando ineficazes para bem tutelar aquilo que em qualquer Estado constitucional é tutelado: a liberdade individual do cidadão. Restringir o Habeas Corpus é medida autoritária por definição: é ele que escancara as ilegalidades do Estado e as corrige, ampliando e protegendo a liberdade do cidadão em detrimento do poder punitivo tresloucado do Estado.

 


[1] Ver em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2025/11052025-Um-milhao-de-habeas-corpus-no-STJ-mais-ou-menos-justica.aspx, acesso em 08/11/2025.

[2] Life of Clarendon, t. II, p. 454 apud BUCKLE, Henry Thomas. História da civilização na Inglaterra, Vol. II, Trad. Adolpho J.A. Melchert, São Paulo: Tip. da Casa Eclética, 1900, p. 49.

[3] História da civilização na Inglaterra…, p. 48.

[4] HALLAM, Henry. The constitutional history of england, Vol. I, 1878. p. 618.

[5] LORD MACAULAY. The History of England, Vol. I, London: Longmans, 1870, p. 249.

[6] CONSTANT, Benjamin. Escritos de política, Trad. Eduardo Brandão, São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 153.

[7] SIQUEIRA, Galdino. Curso de Processo Criminal, Editora Livraria Magalhães, 2ª Edição, 1930, p. 382.



Fonte:Conjur

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